A sinceridade no cinema

Cinema terça-feira, 30 de julho de 2019

Considerando que tem duas pessoas aqui no Beico oi Jo e uma delas só faz texto de cinema, eu normalmente me afasto da coisa, mas vou mudar isto aqui: Vamos falar sobre filmes. E coorporações. E produto e arte. E, quem sabe, sobre gaivotas.

Joel Haver é um canadense que gosta de fazer filmes. E, já que vivemos num período que a internet a tudo possibilita, ele faz curtas pro Youtube… Eu tenho certeza que você conhece várias facetas do Youtube: As de gente fazendo streaming de gameplay, a de youtubers fazendo merda, a de vídeos de letras de música, a que disfarça vídeos “educacionais” pra mostrar nudez e mais tantas e tantas outras que se formam através do uso do público, pra não dizer, é claro, daquela faceta povoada por grandes empresas, indo da indústria da música até a indústria do cinema e abrangento tudo no meio… Bem, o termo-chave aqui é “indústria”, e enquanto você poderia debater o Youtube em si, o Google e todos os problemas nessas duas empresas/plataformas, vale dizer que ainda tem gente que usa o Youtube… Como o YOUtube. E uma dessas pessoas é o Joel.

Tem o link alí em cima e cê pode assistir os outros vídeos. Eles vão desde alguns segundos até vários minutos, passando por comédia, quase-vlogs, drama, nonsense e, claro, a boa e velha “crítica social”… No caso do Joel isso tudo inclui bastante humor auto depreciativo e meta linguagem. O cara tá fazendo isso (Na internet) por sete anos, e porra, já era algo meio raro há sete anos, hoje então… Enfim, se você gostou desse vídeo acima, vale ir ver os outros. Ou você pode acompanhar esta série (Que já acabou):

Eu tô falando isso tudo por causa de algo muito importante pro texto em questão, e que pode muito bem ser resumido no primeiro vídeo deste texto. Além da série acima, e dos curtas, o Joel também já fez alguns longas, todos os quais você pode assistir no canal do Vimeo dele, mas o longa mais recente é Island.

https://vimeo.com/327132957Sim, na íntegra; infelizmente sem legendas

Island, como o próprio Joel fala, é um filme sobre solidão, e o que me chamou a atenção pra coisa toda pra início de conversa é o fato de que ele fez tudo sozinho: Câmera, áudio, edição, luzes… Island é um filme sobre estar sozinho feito sozinho, pegaram?

Eu aconselho todos a assistirem o filme antes de ir pro resto do texto (Principalmente se for o único vídeo que cê for ver de tudo aqui).








Enfim. Vendo qualquer um dos vídeos mais “sérios” do Joel, nos quais ele fala de como entende cinema e produção e o mundo atual o resumo é bem simples: Pra ele, fazer cinema é se expressar, não (Só e principalmente) criar narrativas. Agora, cê pode discordar completamente dessa ideia, mas há fatos no que Joel fala (E, de novo, o primeiro vídeo lá em cima é um excelente resumo da coisa toda): Produtos são criados por empresas que irão usar qualquer discurso para promover e vender estes produtos, e obviamente o cinema não é diferente.

Isso é interessante porque Island é um excelente exemplo do que seria o “contrário” (Ao menos na visão de Joel): Nele, o personagem é Joel, fazendo o que Joel faz da sua vida, vivendo como Joel vive… Não é um documentário, é o que se poderia chamar de “cinema real”, e não só isso é algo com muito pouco alcance na nossa sociedade como também é algo que passa longe de ser lugar comum no próprio cinema (E sim, estou incluindo o cinema indie nisso aí). Não é questão de certo ou errado, é questão de diferente, incomum, pouco explorado. Island pode parecer um filme tosco à princípio, mas, de novo, sugiro que todo mundo assista.

É interessante pensar que a gente tem a possibilidade de consumir cinema assim: Pessoal. Porque por mais independente que um filme seja, quantos são sobre gente de verdade? Digo, tantos e tantos são sobre pessoas, sobre acontecimentos reais, sobre situações comuns, até mesmo sobre fatos bem documentados, mas quantos mostram pessoas de verdade? Sem atuação, sem personagem, sem o pressuposto de que, dentro da duração do filme, a história tem que ir do ponto A pro ponto B (E, preferencialmente, de forma que o perscurso não seja um saco)? Island tem personagem, tem atuação e tem ficção, mas cara, é um filme 100% real. Eu não concordo com boa parte das posições e opiniões de Joel (E isso não está explícito em Island, mas a maioria não está…), mas é absolutamente incrível ver esta outra forma de cinema.

A internet facilita muita coisa, bem como compras online, globalização, mercado e blá blá blá: Dá pra fazer cinema assim desde sempre. Daria mais trabalho? Provavelmente. Seria mais caro? Provavelmente. Continuaria tendo menos alcance ainda? Provavelmente. Mas ainda possível, e a gente não vê esse tipo de cinema por aí. Isso não passa em cinema algum. Não passa em canal e TV por assinatura, não entra no catálogo de streaming algum, não vai estar na baciada das Americanas daqui uns anos. Nessa discussão cabe aquela velha história do ciclo vicioso: As pessoas fazem o que as pessoas vêem, e assim a roda gira, num modelo bizarro de entropia.

Mas… O que tem impacto?

Porque cara, o próprio Joel admite que esses filmes não se pagam. Aliás, cê pode assinar o Patreon dele caso te interesse. Mas esses filmes, ou melhor, esse tipo de filme não tem mercado.

Porque não tem interesse do público
Porque não tem retorno financeiro
Porque não gera buzz
Porque não é universal à todas as culturas
Porque não tem representatividade
Porque é muito específico e pessoal
Porque não dá pra transformar em franquia
Porque os criadores não tem interesse em “se vender”
Porque se não fosse indie não teria graça
Porque é muito nicho
Porque as pessoas preferem ficção
Porque entretenimento é o ponto principal e não a reflexão
Porque debate não funciona numa mídia unidirecional
Porque se cinema for sobre pessoas reais, você pode muito bem sentar na praça e olhar pras pessoas sem pagar absolutamente nada por isso, o que acabaria destruindo o cinema como indústria e o substituindo por produções limitadas em todos os aspectos, que levaria à banalização da mídia como um todo

E enquanto essas todas são preocupações e debates válidos por seus próprios méritos… O cinema “atual”, o cinema que a gente assiste no cinema… Tem impacto pessoal?

Eu sei que vende, eu sei que as pessoas fazem cosplay, que vira trabalho acadêmico e citação em mesa de boteco, mas o quanto esses filmes fazem de diferença pra cada pessoa que os assiste? Não tô negando nem um pouco a importância de obra alguma, afinal o ser humano é uma bagunça do início ao fim e sempre haverá gente pra achar significado em tanto no que tem de sobra quanto no que não tem absolutamente nada, mas se um filme criado a partir do pressuposto da ilusão (Afinal, mesmo que o mais realista possível, um filme coloca personagens em situações que só duram até o diretor gritar “corta”) pode ter e tem esse impacto tanto à nível individual quanto à nível coletivo, o que um filme que faz o caminho inverso (Que tem pessoas em situações reais, que não terminam quando as câmeras param de gravar) pode fazer?

Sim, eu percebo o quanto isso soa exatamente como um documentário, mas não é um documentário.

Por que não?

Que bom que você perguntou: Um documentário parte do princípio de que tudo que acontece na frente da câmera é real. Isso não quer dizer que seja: Entre mentiras, alucinações, teorias de conspiração e erros (Sinceros ou não), há mais do que margem suficiente para documentários não mostrarem “a verdade”… Mas tudo num documentário busca ser a verdade, ainda que parcial, ainda que tendencioso, ainda que baseados em mentiras e manipulação e preconceito e ignorância. Um documentário não te diz que ETs existem a menos que as pessoas envolvidas ou acreditem na existência de ETs ou que queiram que o público acredite na existência de ETs.

Esse “cinema real” (Sim, sempre em aspas, e aliás, a expressão é minha, não do Joel, e eu não à levo tão à sério) não tem a intenção alguma de te convencer de que o que está na tela é “a verdade”. Dá pra ser metáfora, fantasia, sonho, ilusão, não era amor era cilada, mentira, engação, piada e ficção sem problema algum. Deu um nó na tua cabeça? Vai assistir Island.

Mas ainda assim tudo o retratado não tem um único pingo de fabricado, manufaturado, coorporativo, estudado, analisado. Não existe pesquisa de mercado porque não tem mercado, não existe personagem porque não tem ficção, não existe fórmula porque o público é pra quem o filme serve, e se formos ser sinceros, tem tantas e tantas vezes que nem quem está do nosso lado nem nós mesmos sabemos o que serve ou não serve pra gente. E quer mais? Esses filmes sequerem servirão pras pessoas o tempo todo: “Servir” está intimamente ligado com tempo, e o que está acontecendo na vida de cada um, que qualquer momento antes ou depois do ideal já será inútil… Cara, como você vende uma parada dessa?

(Você não vende, e esse é justamente o ponto da coisa toda, mas né, eu não sou o tipo de gente que acha que tudo magicamente se resolve e muito menos o tipo de gente que – deus me livre – acha que no comunismo isso não seria um problema)

Pra complicar essa história vou entrar agora com aquele debate quase onírico da arte: O que é arte? Dá pra chamar de arte o que vende bilhões em ingressos e faz pessoas chorarem nas salas de cinema do mundo todo? E o que só é minimamente interessante pra meia dúzia de gatos pingados no mundo inteiro e vai gerar mais um filme caseiro editado no Movie Maker (Sim, eu sei que o Movie Maker não existe mais, cês entenderam meu ponto)? Isso é uma pergunta tendenciosa porque coloca a questão inteira em dois únicos pontos: Reações e amplitude. Dá pra dizer que o que muda a vida de alguém é arte, mas velho, eu já pisei em merda e mudou a minha vida (Porque eu aprendi a olhar pra onde eu ando) e aquilo não foi arte. Dá pra dizer que arte é o que faz as pessoas sentirem alguma coisa, mas qualquer pessoa que já tenha assistido a final de um campeonato qualquer ou terminado um relacionamento definitivamente sabe que aquilo não é arte. Aí a gente entra em outra questão fundamental da coisa toda que é “dá pra comprar arte?”, e o resumo de onde isso chega é que “depende o que é arte pra você e quanto dinheiro você tem”.

Arte é uma questão de intenção ou de interpretação, e como exatamente isso se articula com o fato de, independente dessa resposta, vai ter gente botando preço e gente pagando o preço por qualquer uma das duas?

Pro Joel o que está no filme deve ser refletido e refletir em como o filme é feito. Em outras palavras (E me repetindo), o filme sobre solidão foi feito só por ele. Esse é um ponto que eu não concordo, mas é um ponto que leva (Ou levaria) à consequências interessantes de serem análisadas: O quão diferente Island seria se fosse feito por outra pessoa qualquer? Porque afinal é do e sobre o Joel… E se um bilionário fizesse Island? E se essa pessoa ainda fizesse tudo sozinha, com o mesmo roteiro, com as mesmas ideias, mas ao invés das câmeras e microfones do Joel tivessemos equipamentos profissionais de última linha? E se o filme não fosse gravado na sala de casa, mas literalmente numa ilha deserta? E se “sozinho” significasse “com uma equipe inteira de filmagem, pré e pós produção e de balde de pipoca grande e refrigerante de graça na minha mansão no Hamptons”?

O quão “pessoal” e “real” pode ser esse cinema, a ponto de deixar de ser relevante pra qualquer outra pessoa do que quem o fez? Partindo daí… Dá pra um filme da indústria (E não estou me referindo só à Hollywood não) ser um filme “pessoal e real”? Digo, claro que não tem espaço pra um filme desses do jeito que a indústria é hoje, mas daria pra ter?

Se você assistiu Island e quer saber um pouco mais, o Joel fez um AMA no Reddit que você pode ir checar. Aliás, a mensagem no primeiro vídeo deste texto é real: Ele se comprometeu a assistir todos os filmes de longa metragem que enviarem pra ele. Eu sinceramente não sei o que vai ser do Joel e nem dos filmes dele, e é bem verdade que eu acho que boa parte das opiniões dele sobre fazer filmes e o mercado ao redor disso vêm em boa parte daquele discurso de “não tem valorização da arte”, mas também é verdade que eu sei que esse cara tem coragem e que sabe botar isso em filme.

Island é muito, muito legal, independente desse discurso chatíssimo que eu fiz ao redor da coisa toda, e se você quiser só assistir a parada e pular este texto inteiro, vai fundo: Island é legal como filme, não como debate, como exercício, como provocação ou mesmo militantismo (Sim, militantismo é uma palavra de verdade).

E se você chegou até aqui e achou que eu esqueci das gaivotas: A gaivota é gente boa, o peixe é um pau no cu.

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