Sobre a memória e a vida das referências

baconfrito sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Recentemente eu jogava Driver: San Francisco, que aliás é ótimo, recomendo muito. Bem, em uma das missões logo no começo do jogo o personagem, John Tanner, precisa perseguir e pegar dois larápios que roubaram a caixa de dízimos de uma igreja. Assim que ele incorpora no policial que dirige a viatura (É, o jogo tem suas esquisitices) e entende a situação, ele diz: “Esperei a minha vida toda pra dizer isso, mas… Nós estamos em uma missão de Deus”. Sacou? Não? Talvez em inglês: “We’re on a mission from God”. Ainda não?

Bem, esse é justamente o ponto desse texto. Vem comigo.

A frase enigmática é uma referência. Pra entender essa em particular você precisa ter assistido e ainda lembrar de Os Irmãos Cara-de-Pau, um clássico de 1980, com Dan Aykroyd e John Belushi cuja resenha foi feita aqui no Bacon quatro anos atrás aparentemente por um dos integrantes da turma do Snoopy. Rá! Viu? Outra referência, por que o nome do colunista lá é Minduim. Lembra do Minduim? Sabe, de Peanuts. Não? Ah, esquece.

Como dá pra notar, referências são simples. Você faz uma, confia que os seus ouvintes vão entender e pronto. Pode ser pelo motivo que quiser, se a situação for favorável. E aqui eu me refiro a referências à chamada cultura pop, que pode ser qualquer coisa de um filme, série, quadrinho, etc, produzido nos últimos, sei lá, sessenta ou setenta anos. Em determinado contexto, para fins cômicos, você pode cruzar os braços e piscar, como Barbara Eden fazia em Jeannie é Um Gênio. Você pode fazer um olhar neurótico e dizer que a verdade está lá fora, como Mulder fazia em Arquivo X, durante uma conversa sobre OVNIs. Pode dizer que o espaço é a fronteira final, como dizia o Capitão Kirk na abertura de Jornada nas Estrelas, a série clássica, para reagir à notícia de que o homem vai pisar em marte. Recentemente, em reação a alguma idiotice que um amigo meu disse, abri os braços e gritei “NOOOOOOO”, imitando Darth Vader, em Star Wars. Referências são assim, esses pequenos momentos que lembram alguma coisa que você e sua patota conhecem e gostam.

Ou não. Por que referências são facas de dois legumes, como todos sabemos. Um momento incrivelmente brochante da vida é quando uma referência não é entendida. É chato pras duas partes: Pra quem fala, já que essa pessoa provavelmente tentava ser engraçada, inteligente, soar legal, sei lá, e pra quem ouve, que se sente idiota. Aliás, você acha a pessoa idiota. “Como assim ele não sabe quem é o Michael Jackson? MOLEQUE BURRO E HEREGE”, dirá você daqui a quarenta anos, depois de tentar fazer um moonwalk durante a ceia de natal, para o constrangimento do seu neto adolescente. Por isso que, agora há pouco, enquanto eu tentava desesperadamente ter uma idéia pra escrever esse texto, eu concluí que referências têm uma vida. Elas envelhecem como aquilo que as originou e se desvaem no tempo e espaço.

 “Pera aí vô, como assim ele MUDOU DE COR?

Mais do que isso: É uma questão cultural, é a memória de uma geração. E isso vale pra qualquer pedaço de memória, seja da cultura pop, que me deram idéia pra esse texto, ou não. A cada nova geração que nasce no Brasil, menos pessoas entendem o que significa a música O Guarani, por exemplo. Onde ela era usada, se tem relação com política ou medicina – sem uma memória atrelada à ela, sem um significado. Pessoas mais velhas ouvem e reconhecem imediatamente como o tema do programa de rádio A Voz do Brasil, e que geralmente era seguida pela frase “Em Brasília, dezenove horas”. Essa é uma referência histórica (Por que esse assunto tem tudo à ver com história) que eu não adquiri sozinho, mas sim através de membros daquela geração anterior que conheceram a situação em primeira mão.

Memória, história e significado são as chaves de uma referência e sua vida. Definem se vai ser entendida ou não, nos remetem à situação de sua origem – se está esquecida, se o tempo já cobra seus tributos sobre ela -, e também nos falam muito sobre a pessoa que a fez e quem a entendeu. Naquele mesmo natal de 2054, você e seus amigos da velha guarda vão se juntar e contar anedotas engraçadíssimas sobre soprar cartuchos de video game, enquanto cantarolam o tema de Zelda. Os mais novos não vão entender. Talvez algum guri que curte “essas coisas antigas” se junte a vocês, maravilhado por um bando de velhotes que realmente viram de perto o nascimento dos jogos em 3D. E você vai se sentir ainda mais antigo. Isso já acontece, aliás, já que os meninos e meninas de 14 anos que nasceram no novo milênio não sabem mais o que é um VHS. Provavelmente acham que Macgyver deve ter sido algum inventor famoso (Tá, eles podem estar meio certos nessa) e que o Nintendo 64 é só um troço velho e esquisito, apesar de ter só vinte anos.

Toda referência é um pedaço de memória coletiva. É algo que você divide com a sua geração, e que só pode viver plenamente através de quem a testemunhou, e assim passar pra próximas gerações. Cada vez que você abre a boca pra citar algo que você gosta, está atestando sua época, ou a de outros antes de você, levando um pedaço dessa cultura um pouco mais pra frente no tempo. E tudo que eu posso dizer é: Aproveite. Viva com aquilo que o tempo te deu. E, principalmente, aprenda com aqueles que vieram de outras épocas. Você pode até não entender seu avô citando filmes do John Wayne, mas pode até gostar se procurar saber quem ele era. E um dia desse você vai ser que nem ele, falando de coisas que viveu em um mundo tomado por novas pessoas, que por sua vez vão criar suas próprias memórias.

Vida longa e próspera. Rá, entendeu? O Spock falava isso. Ah, enfim. Deixa pra lá.

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