Crônicas Vegetarianas

Livros terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Churrascão. Picanha, maminha, linguiça, alcatra, coraçãozinho, costela, contra-filé, farofa. Galera reúnida, churrasqueira absurdamente quente, cerveja e refrigerante (Ambos gelados), música, debates de futebol, política, trabalho e o que a namorada do Alfredo está vestindo. Daqueles de fazer inveja para os vizinhos, atrapalhar o trânsito e tudo mais.

 NUNCA, DE JEITO NENHUM, JAMAIS desse jeito.

Como em todo churrasco que se preze, a galera estava se divertindo, as carnes saíam em intervalos regulares, de mal passada até “no ponto”, graças ao inegável talento de Seu Arlindo, dono da casa, dono da churrasqueira e pai do dono das cervejas. Entre conversas, debates, tentativas (Felizmente) isoladas de ligar o karaokê, peladas, mergulhos e reposições de gelo chega a notícia: Fernando chegou.

Fernando era aquele cara que todos gostavam, o típico “gente boa”, que quando chega faz a festa “começar de verdade” e ao ir embora a coisa acaba. Goleiro e hábil jogador de truco, Fernando foi saudado por todos, serviu-se de “da loira”, tirou o pagode que estava tocando e se sentou, já conversando com os mais chegados.

Dentre conversas, gols, partidas, rodadas, bebidas e “fiu-fius” para as namoradas alheias, Seu Arlindo, do alto de seus 35 anos de churrasqueiro enfim oficializa o que o cheiro já prometia: Enfim sairia a rodada principal de carnes. Como em todo churrasco, a aglomeração formou-se em volta da tábua de corte, e dela saíram os mais deliciosos cortes possíveis. Todos se serviram, com pressa é claro, e eis que a notou-se que o centro da festa, Fernando, não havia tido a chance de servir. Um absurdo, é o que era! Fernando? Sem um pedaço? Jamais! Pedaços surgiram das mais variadas mãos, sendo estendidos e cedidos com prazer.

– Ah, não cara, valeu, eu não como carne.

Aquele “ah!!!11” aspirado, de total, completa e irrevogável surpresa preencheu o ar, surround 5.1. Depois dos poucos segundos de silência imperturbável, a multidão explodiu, com gritos, acusações, descrenças e cochichos. Seu Arlindo quase deixou a carne queimar.

– Mas gente, é minha escolha! Os animais, o desperdício, sem falar na saúde!

Em condições normais bastaria a primeira frase para que todos concordassem com Fernando, mas alí a situação era diferente. De fato notou-se certa concordância por parte das namoradas na menção da “saúde”, mas nada que alguns minutos na esteira não resolveriam. Mesmo os amigos mais próximos ficaram impressionados com a revelação, e mesmo que o barulho tenha diminuído, muitos olhavam Fernando de canto de olho. Ele estava sozinho.

– Porra Fernandão, que merda é essa cara? Desde quando cê não come carne? Nego aqui já tá querendo te expulsar cara!
– É cara, a gente se conhece tem anos e você nunca foi disso!
– Pow, eu comia, cês sabem disso, mas vivia com cálculo renal, você mesmo teve que me levar pro hospital uma vez, Robertão.
– Eu sei, mas um monte de coisa dá pedra no rim cara.
– Claro, mas tava falando com uma galera que já era vegan, e vários deles falaram que tinham também, mas quando mudaram a dieta nunca mais deu, e porra, se é tão simples era só tentar, e nunca mais tive.
– Porra velho, mas é carne!!! Se você quer falar de saúde, e as vitaminas? E proteína?
– Cara, não comer carne num significa não comer o que cê precisa. Porra, tá parecendo torcedor fanático que mata por causa de jogo!

 Já falamos sobre Douglas Adams

Silêncio era o que se ouvia: Ninguém pedia bola no jogo, as mulheres conversavam baixo (!), ninguém trucava. O que se ouvia eram os sons que não poderiam deixar de ser feitos, como o da gordura esquentando na grelha. Era mais do que óbvio que todos evitavam Fernando, e mesmo os que estavam conversando com ele se calaram por alguns instantes, seja para tomar fôlego, seja para não passar pro lado que exigia um empalamento.

– E desde quando você tá nessa?
– Tem quase um ano…
– Mas só não pode carne né…?
– Ovo, mel, leite…
– Nenhum?
– Nada.

“Mas por que, velho?” foi a pergunta seguinte. Apesar de muitos estarem ultrajados, ainda era o Fernando, e se um pouco de compreensão fosse suficiente, por ele tava valendo. A preocupação era genuína, afinal, vai que o cara morre por desnutrição ou fica maluco de vez e fode com a churrasqueira?

– Porra, já tinha as pedras, já conhecia alguns que aderiram à causa e tal… Ví uns vídeos, umas matérias de como tratavam os animais, de como afeta o solo e a economia… Cês sabiam que tem gente na África que morre de fome porque a produção de comida vai pra alimentar gado?
– E o banco de couro do seu carro?
– Ih, é mesmo ein? E aí, Fernandão, e o couro? E aquelas blusas de lã?
– Mas isso tudo eu já tinha antes de ser veg..
– Nãnãnãnão! Não dá pra ser só MEIO. Você não é meio-corinthiano-meio-botafoguense!
– Nem vem com essa, não se mata ovelha pra tirar lã!
– É, mas pra tirá couro sim!

É claro que Fernando já tinha dado conta de que perdera aquela, mas porra, o carro era de ANTES, e quando fosse trocar não seria um com banco de couro. Serviu-se do vinagrete e do pão, foi ver o placar do jogo e falar com a galera. Em vão: Os que não ignoravam usavam a tática dos monossílabos, e quem passava disso já sentia olhares reprovadores. Fernando voltou pra sua mesa, e como em toda situação parecida, todos ficaram quietos quando ele chegou… Essa merda tava indo longe demais, tudo tem limite!

– Cês tão exagerando foda. Não tem nada demais em não comer carne, e agora tá todo mundo de frescura só por causa disso!
– Cara, você falou isso na CARA do pai do Gilberto… O velho quase infarta…
– Claro cacete! 50 anos comendo gordura!
– Mas cê comia também…
– Eu não tenho nem metade disso porra! E parei!
– E só porque crime prescreve cê acha que a culpa prescreve também?
– E quem aqui nessa merda tem mais culpa?! Vocês que apoiam o desmatamento pra fazer pasto ou eu que apoio a agricultura natural?!
– Então derrubar árvore pra comer é melhor que derrubar árvore pra ter espaço?!
– Eu não MATO pra sobreviver caralho!!!
– Planta é um ser vivo cara!
– Vai te foder Fernando! Que hipocrisia do caralho é essa?!

 E lhe digo de maus tratos.

Tudo estava indo de mal à pior, Fernando já não era o ídolo alí, mas é claro que ele não iria desistir de suas convicções só para se adequar ao que eles achavam. Tanta gente morrendo, tanto trabalho, problema e sofrimento só porque eles não se davam ao trabalho de PENSAR! E daí se foi assim por milhares de anos? Evolução! Sem falar naquele monte de merda do tipo “sem leite não tem cálcio” e “falta de ferro”!!! Pff, queria só ver se eles soubessem dos hormônios, da pressão alta e da merda dos anti-depressivos!!!

Não que já fosse “tarde”, num churrasco normal a coisa estaria ainda pelo meio, quando algumas pessoas já foram embora (As que tem namoradas principalmente), mas as que realmente se importam ainda estão lá, e como todos sabem, os melhores cortes ficam para quando tem menos pessoas com quem dividir. Seu Arlindo, mesmo abatido, continuava cuidando do fogo, por lealdeade, então chamou os presentes para aproveitar a costela ao vinho que estava saindo.

Desde que a discussão com os amigos encerrara, Fernando estava isolado num canto, aproveitando a cerveja, porém se recusava a comer mais qualquer coisa alí, até mesmo o que não tivesse carne. A galera, agora reunida perto da churrasqueira, debatia acerca do gelo que estava por acabar e como isso mudaria drasticamente a perspectiva etílica da reunião, porém, era claro também que nenhum sequer voltava o olhar para o ex-rei.

Mais por uma questão de educação e respeito aos bons e velhos tempo, convencionou-se que alguém deveria proferir algo à respeito, e como Gilberto era o dono da festa (E por consequência o mais ofendido nisso tudo), coube à ele tentar contato.

Mais uma negação e mais um debate acerca de chifres e cascos, ficou determinado que lado nenhum iria fazer coisa alguma, então, como não havia mais escolha, a costela acabou. Bem como, pouco depois, o vinagrete, a farofa, o pão e a maionese, sobrando a salada… Murcha. Já era noite quando Fernando avisou que estava indo. Era aquele momento em que os últimos pedaços e espetos são colocados na churrasqueira, e que tudo que resta são os pães de alho e as não-tão-geladas bebidas.

– Gente, vou indo.
– Ok.
– Tá.
– Tchau.

Obviamente a coisa teria sido completamente diferente se não fosse a ignorância sem sentido de Fernando… O ser humano só sobreviveu porque comia carne, e essa merda toda de vegetarianismo era só mais uma das demonstrações claras de que a humanidade estava se enfiando cada vez mais no buraco… Bando de viados… E não, dar o braço à torcer por uma idiotice feito essa já era demais… Ok, você é gay, não dirige, mas porra, carne sim! E ele só tava fazendo isso por frescura! O Fernando que todo mundo conhece não é assim, e pela despedida de tão poucos dentre os presentes, estava claro que nenhum deles aceitava isso.

– Sério que cês vão continuar nessa ignorância?
– Pfff…
– Sério que cê vai continuar nessa hipocrisia?
– Vocês, todos vocês, tão se baseando nesse preconceito estúpido e sem sentido. Eu não mudei, só fiz uma escolha que é MINHA e que não afeta vocês em nada.
– O Fernando que eu conheço nunca diria uma porra dessas.
– Ô Fer, saúde é uma coisa, e eu sei que os garotos tão exagerando, mas você também não ajuda!
– Mas não tem o quê ajudar, Gabi! É pura infantilidade!
– Você não disse que tava indo?
– Eu vou… Quem sabe vocês não aprendem alguma coisa até o próximo churrasco?

Claro que haveria um próximo churrasco, a questão é que mudara de “que carne levar?” pra “chama o Fernando ou não?”. Agora que finalmente todos poderiam debater abertamente a questão, ninguém tinha vontade: Ou calavam ou comiam, e claro, todos preferiam comer. Seu Arlindo finalmente despediu-se para ir dormir, e os poucos que ficaram já estavam na saidera enquanto suas respetivas namoradas iam pegar bolsas e outras coisas largadas na piscina.

Latinhas no lixo, panos postos pra lavar, limão para limpar a grelha, resto do carvão guardado, despejar o gelo derretido. Assim que ajudaram Gilberto a arrumar as coisas enquanto as garotas não voltavam, acabaram com o pão de alho e, num ato infinitamente mais solene que normalmente era, apagaram a churrasqueira. Como o Fernando fez isso com eles? Tanto tempo, tantos churrascos e agora vem com essa…

– Tudo pronto?
– Sim… Já pegaram tudo…? Então vamos.
– Gilbertão, valeu, churrasco foda.
– Verdade… Diz pro teu pai que a gente se desculpa pelo Fernando…
– Pode deixar… Tchau Gabi, Mônica…

As portas do carro fecharam, Gilberto esperava para fechar o portão. Enfim saíram, buzinando pro dono do churras.

– Ai gente… Horrível isso…
– É mesmo… Eu nunca esperava isso do Fernando… Justo ele!
– Chega. Ele já estragou o dia, não vai estragar o resto da noite também… Deixa ele com carne de SOJA.

No dia seguinte, Seu Arlindo, como churrasqueiro completo que era, acordou cedo para limpar as coisas. Lavou os espetos e a grelha, fechou e guardou o carvão, limpou pia, facas, tábua de corte: Pacote completo, para não deixar para esposa ter esse trabalho. Enfim com trabalho feito, era hora de ir para a frente da TV, deu a última checada no recanto do guerreiro.

– Ué… Graça, você pegou o pote com os espetinhos?

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