A Fruta do Diabo

Contos sexta-feira, 13 de abril de 2018

Caro Sr. Pacheco,

Acredite-me: Não há nada mais que eu gostaria de fazer que atender à vosso pedido e comparecer, à Quinze de Abril, à vossa reunião. Entretanto e infelizmente tenho compromissos há muito agendados e irrevogavelmente inadiáveis à atender. Ainda que tais engajamentos sejam de natureza particular e pessoal, sinto que vossa pessoa é de confiança e que tua integridade seja à prova de ressalvas. Veja bem Sr. Pacheco, nos últimos tempos – nos últimos oito meses de fato – tenho sofrido terríveis crises nervosas: Em um mero instante passo de um membro de nossa sociedade, civil e (Com o perdão da arrogância) bem educado, para uma demonstração temerosa da mais baixa estirpe de nosso país. Torno-me, ouso dizer, um bárbaro, sem ética e respeito algum aos meus semelhantes. Sr. Pacheco, é com grande pesar que coloco a realidade no papel: Torno-me um comedor de açaí.

Ainda que me doa e entristeça, devo relatar-te os eventos que levaram-me à tal deplorável condição. Tudo começou, veja bem, há dois anos atrás, durante minha visita às selvas da Guiana Inglesa. Estávamos, eu e meu grupo de exploradores da Capital do estado, numa jornada de dois meses dentre as árvores, palmeiras, samambaias e mosquitos da Amazônia Equatorial, um empreendimento dificílimo, cansativo e por muitas vezes frustrante, mas que ainda sim reservava imensa satisfação para mim e meus colegas, exibindo-nos, por vezes, vistas magníficas de árvores centenárias, cataratas altíssimas e cavernas grandes o suficiente para acomodar um homem adulto sobre os ombros de outro. Nos dois meses de expedição catalogamos e analisamos dezenas de espécies diferentes de vegetais, e muito mais de animais, insetos e anfíbios, enriquecendo, sem dúvida, o conhecimento humano sobre a região, sua fauna e flora. Conosco – éramos em oito – viajavam mais seis pessoas: Dois tradutores, pois nenhum de nós falava o dialeto local, e nossos quatro guias locais, encarregados de nos guiar pelas trilhas invisíveis da mata, alertando-nos para os perigos que não faltavam, de cobras e serpentes e chegando enfim à onças e jaguares. No começo receosos, passamos rapidamente à confiar nestes homens – ledo engano! – nossas vidas estavam em suas mãos e seus conhecimentos, e tantas vezes eles nos livraram de despenhadeiros disfarçados e venenos mortais que enfim depositamos nossos bons grados em seus serviços.

É um tema extenso nossas descobertas na Guiana, e não tenho dúvidas de que acharia tremendamente interessante o livro o qual redigi sobre nossas descobertas à época, pode encontrá-lo pelo título Uma Viagem ao Mundo Perdido: Minhas descobertas no coração da maior floresta do mundo, pela Editora AltoMundi. É um maravilhoso compêndio de nossa aventuras no equador, ricamente narrado por mim e ilustrado pela magnífica Elisa de Maltese, um talento sem igual na arte da representação da biologia natural. Ainda assim, devo ater-me à narrativa em questão. Estávamos na Guiana há pouco mais de dez dias quando vimo-nos, sem aviso algum, com providências terrivelmente escassas: Uma situação gravíssima quando a cidade civilizada mais próxima contava mais de seis horas de barco de distância. Após algum debate, lembramo-nos de, na noite anterior, termos acampado próximo à rastro de macacos: Sem sombra de dúvida os símios haviam roubado nossa comida durante a noite sem que percebêssemos! Se me contassem também não acreditaria, caro Sr. Pacheco, mas era a única explicação possível! Vendo-nos em tal lastimável situação, sem leite, manteiga, geleia, torradas, ovos, açúcar, café ou biscoitos (Até mesmo sal os animais levaram!), nossos guias se prontificaram à iniciar uma caçada, literalmente trazendo-nos nosso desjejum da floresta. Mais pitoresco impossível, asseguro-lhe, mas não tínhamos outra opção, e visto que todos éramos experientes caçadores nas pradarias do outro lado do Atlântico, aceitamos a oferta.

Um dos nossos guias adiantou-se, seguindo a margem do rio em que estávamos até alguns quilômetros mais adiante onde, segundo ele, seria um bom local para a pescaria “tradicional” (Ao que pude notar, isso quer dizer com uma vara improvisada e nada mais), ao passo que os demais entraram de volta na mata, cada um seguindo uma trilha visível apenas para si mesmos. Era o meio da manhã quando havíamos parado para o descanso e notado nossa iminente falta da provisões, e não antes das três da tarde quando eles retornaram: Horas esperamos, debaixo de sol e insetos incansáveis, sem resposta de nenhum dos quatro. O primeiro a sair foi também o primeiro a retornar, trazendo consigo meia dúzia de peixes esquálidos, impróprios para o consumo civilizado mas que ainda sim fizemos em caldo com as poucas batatas que sobraram e comemos em tigelas sem talheres. Em seguida voltaram dois dos demais guias, ambos sem sorte em sua caçada, muito para nosso azar; eles também partilharam da sopa de peixe, também a contragosto. Meia hora mais tarde, quase quando nossos relógios marcavam quatro da tarde (Horário ao qual não confiávamos, dada a necessidade de acertar continuamente os mecanismos internos), o último dos nossos guias então retornou trazendo consigo não só uma lebre por sobre o ombro, mas também a coroa de seu chapéu cheia de pequenas frutas roxo-avermelhadas. Rapidamente assamos a lebre em brasa (Felizmente os macacos haviam poupado nossas ervas, em sua pressa de não serem descobertos) e enquanto parabenizávamos os esforços de tão bem aventurado guia, este nos contava sobre as curiosas frutinhas que desconhecíamos.

Quem dera saber, então, o que hoje sei! Os erros que teria evitado, os malefícios dos quais seria poupado e pouparia os que prezo… Mas a história deve continuar. “Acai” eles chamavam a fruta, que adaptamos pro hoje conhecido Açaí. Sacando uma cumbuca de sua mochila, o guia começou a macerar as frutas. Segundo ele, não só era possível obter uma massa daquelas frutas, como também óleo, suco e tintura… Estávamos descrentes, mas observávamos com atenção o manuseio das mesmas, enquanto ouvíamos lendas locais indígenas sobre a origem da mesma. Nossos recursos eram limitados, então não poderíamos experimentar as diversas receitas que nossos guias juravam pelo nome de suas mães ser possível fazer com a fruta, então tivemos de nos contentar com sua polpa.

Sr. Pacheco, como lhe disse há oito meses nos quais tenho tido meus episódios nervosos, e ainda sim relato à ti acontecimentos de mais de dois anos atrás. Isto se deve pelo fato que até o fim do ano passado, minha experiência com o chamado açaí era limitado apenas aos acontecimentos narrados acima, nas longínquas terras do norte. Mas então, em uma bela tarde do final de inverno, deparo-me com o açaí aqui, na Capital! Não pode imaginar o meu espanto pois, apesar de a tal fruta ter de fato nos ajudado num momento de necessidade eu jamais quis vê-la novamente! Meu espanto deveria ter sido para mim um sinal, um alarme de precaução, mas ah, não pude conter-me! Marchei venda adentro e exigi do dono todo o seu estoque da maldita fruta: Vinte e oito quilos! Fiz, Sr. Pacheco, fiz e arrependo-me amargamente.

Na mesma noite ordenei meus empregados que varressem a cidade em busca de alguém que soubesse preparar as tão faladas e diversas receitas com a terrível fruta, e de fato encontraram uma senhora, já idosa e com alguns dentes faltando, mas que clama ter vindo do Norte do país há alguns anos e, por muitas décadas ter morado entre índios e selvagens, que comeriam diariamente a fruta açaí. Em suas palavras, alguns usavam-na até mesmo durante rituais bárbaros e pagãos. Esta senhora, cujo nome não ouso contar-te, foi trazida à minha companhia e relatou-me a história de sua vida; aguentei sua narrativa heroicamente, tamanho era meu desvario e obsessão com o açaí. Ao fim de sua narrativa, ordenei que mulher adentrasse minha cozinha e desse ordens às minhas empregadas: Queria tudo que fosse possível extrair do açaí, o mais rápido possível. Por horas e mais horas, através da noite, a mulher e as empregadas se debruçaram por sobre as mesas, fogões, fornos, destilarias e balcões de minha cozinha… Não dormi a noite inteira, mantido acordado pela excitação descontrolada, pela ansiedade desmesurada. O Sol se eleva lentamente em minha janela, através de minhas cortinas, e enfim ouço o sino, o sino que avisa-me que o desjejum está pronto. Salto da cama, literalmente salto e sem mesmo vestir-me adequadamente, desço as escadas de três em três degraus, por pouco não ferindo-me gravemente em minha loucura.

Vou poupar-lhe das descrições, das terríveis imagens que ainda apavoram minha mente quando acordado e permeiam meus pesadelos quando durmo. Basta dizer-lhe que aquele dia, quando cheguei à cozinha, vi que a mulher tinha falado a verdade, e em minha frente estavam os mais variados produtos, cremes e polpas, sucos e vitaminas, óleos, bálsamos, ceras e pomadas, todos no horripilante tom arroxeado profundo. Joguei-me entre as vasilhas e panelas, deixando de lado todos os anos de minha educação e meus modos à mesa, espalhando por chão e teto os mais aterradores vestígios de minha passagem pela cozinha. As cozinheiras olhavam-me como quem olha Satanás em pessoa, incapazes de se mover, com olhos aterrorizados e vidrados em mim… A mulher apenas ria, sentada à um canto, satisfeita com seu serviço enlouquecedor. Disse-lhe que comprei todos os quase trinta quilos da fruta que encontrei, pois devo então relatar que nos dois dias seguintes todo o estoque se foi, o ritual repetindo-se manhã após manhã. O dono da venda chama-me pelo nome, o canalha! Contratei mais empregados com o único desígnio de achar mais da fruta à venda aqui na Capital… Emprego alguns, inclusive, que viajam rotineiramente para o interior na vã esperança de lá obterem resultados. A mulher, a terrível mulher, agora vive no quarto ao lado do meu: Não consigo livrar-me dela, já tentei!

Acredito em vossa bondade, Sr. Pacheco, afinal, como pode ver, sou um homem tremendamente doente, amaldiçoado! Oito meses, como lhe disse, e nunca mais consegui colocar minhas mãos em mais que alguns gramas da fruta do diabo… Mas ai de mim, a desejo, Sr. Pacheco! Preciso dela, e quando não a tenho, entro em colapso, perdendo, pouco a pouco, todos os vestígios que fizeram de mim um membro da sociedade, um membro capaz de sentar-me ao lado do senhor, Sr. Pacheco, de ir à Igreja, de receber em minha própria casa minha família… Isolo-me, é verdade, mas é para o bem daqueles que, um dia, me conheceram. Hoje, sou um fantasma, um mero resquício do homem que já fui. Não tenho desculpas. É pelas minhas próprias ações que hoje encontro-me nesta situação, e devo pagar ainda mais pelos meus próprios erros. Quem sabe, no futuro o Senhor poderá perdoar-me, mas esperanças já não tenho mais, pois eu mesmo não me perdoo. Sr. Pacheco, peço-lhe novamente desculpas por não poder comparecer à vossa reunião, mas como agora também sabe, não tenho mais estirpe necessária para tal: Seria eu uma mancha em meio os vossos caros colegas, uma vergonha para todos e para mim mesmo.

Sr. Pacheco, aviso-te, previno-te: Mantenha-se longe do açaí! Não o procure, não o experimente, não o deixe tomar de ti a tua vida como tomou-a de mim. Esta é minha última carta para o senhor, pois estou perdendo a sanidade rápido, e não sei por mais quanto tempo poderei colocar em palavras meus anseios e pensamentos… Sr. Pacheco, vigia a ti mesmo e as teus iguais, para que não acabem como eu. Boa sorte, boa sorte e muito cuidado, pois a fruta é traiçoeira e não desejo companhia em minha decadência.

Adeus, caro Sr. Pacheco, bem aventurado seja, e caso tenha um pouco de granola e leite condensado pode enviar-me,

Martin D’Ávila



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