A Arte da Aposentadoria

Cinema, Televisão sexta-feira, 05 de abril de 2019

Com a graça de Deus Nosso Senhor Eterno e Bondoso, Supernatural acabou. Mas não é (Só) disso que eu vou falar hoje.

É sempre uma emoção muito grande quando, finalmente, as estrelas se alinham e a TV é livrada de mais um encosto. E “encosto” tem tudo a ver com o tema de hoje aqui: Quando um ator ou atriz decide só fazer um papel eu digo que essa pessoa parou de atuar.

Simples assim: Vários e vários anos fazendo o mesmo papel? Você parou de atuar.

Por quê? Porque atuação é um bagulho criativo: Desenvolver o personagem, seu modo de falar, de andar, seus trejeitos, sua aparência. Interpretar uma personagem requer descobrir e criar cada parte da personalidade da mesma, principalmente quando falamos em projetos nos quais os atores também têm voz no desenvolvimento da história, do roteiro e na direção que o seu personagem toma. Em outras palavras, interpretar um personagem é um exercício constante de conhecer uma nova pessoa, suas características, seus defeitos, sua personalidade, e aí trazer esse personagem à vida, apresentá-lo pro mundo. E aí vem fulano e passa 10 anos fazendo o mesmo personagem. Mesmas características, mesma personalidade: É pura repetição e, eventualmente, essa repetição leva ao automatismo porque simplesmente não tem mais criação.

Você pode dizer que isso é um problema maior de roteiro e desenvolvimento do personagem do que puramente de atuação, e você está meio certo e meio errado: Realmente é um problema que um personagem (Ou todos…) não tenham desenvolvimento. Que toda uma narrativa de acontecimentos passem e não se veja nenhuma alteração nas vidas das pessoas que viveram esses acontecimentos. Porém esse problema não é (Tão) relevante por dois motivos: Primeiro porque há obras nas quais a utilização desse recurso de desenvolvimento de personagem não é necessária e nem presente; segundo porque se você leva 30 anos pra contar uma história você é um incompetente do caralho.

 Apesar da imagem esta foi diretamente pros Simpsons.

O ponto de desenvolver uma história não é criar plot. A história é a parte fácil. A parte difícil é como contar a história. É achar os atores certos, os produtores certos, o diretor e aí é pegar essa gente toda e achar o jeito mais fácil, rápido e – principalmente – eficiente de contar a história. Quanto mais você consegue contar de uma história com menos tempo, melhor. Porque o diálogo tem que ser melhor, as cenas têm que ser melhores, a atuação tem que ser melhor. Porque se não forem, a história não é contada (Ou pior, é contada errado). Eu tô falando aqui de atuação, essa atuação inclui tanto TV, cinema, teatro, rua quanto qualquer outro lugar, mas a verdade mesmo é que isso vale pra absolutamente tudo em que há uma história a ser contada: Legal teu livro ter 1200 páginas, mas elas são necessárias? Muito interessante o seu jogo ter 300 horas de conteúdo, mas é conteúdo mesmo? Ou é encheção de saco pra fazer as pessoas ficarem mais tempo com a tua obra em mãos?

Pode parecer economia desnecessária, mas não é, é edição. É por isso que micro ficção existe. Não é deixar de falar, é falar o necessário e SÓ o necessário. Não é algo novo: Temos exemplos de 2500 anos de idade, indo desde Esopo até Kafka, incluindo fábulas, histórias, piadas, poemas e, mais recentemente, tweets e blogs. Qualquer um preenche capítulos e capítulos de uma novela com material, mas precisa de conhecimento, técnica e esforço pra transformar uma temporada inteira de uma série em dois episódios. Verborragia não é e nem nunca foi sinal de competência (Quem dirá de talento): É exatamente o contrário.

E é daí que vem o “parou de atuar”. Não tem mais a criação, tem só o novelo de lã interminável que é o já conhecido. É patético chamar a VIGÉSIMA TEMPORADA (Alô, Law & Order) de “desenvolvimento de personagem”. Imagina alguém literalmente dizer que em DUZENTAS E OITENTA E SETE HORAS de programação não deu pra contar uma história? São DOZE DIAS, cara. Imagina se chega um conhecido seu e diz que tem que te contar uma coisa e aí você passa quase duas semanas sem dormir, ouvindo a pessoa falar sem parar. Literalmente.

O que me fode nessa história toda é o comodismo. Eu entendo totalmente alguém querer reconhecimento do público, querer desenvolver o personagem, querer uma estabilidade financeira, querer a fama e querer se manter relevante por anos e anos. Isso é normal, faz parte dos desejos e vontades das pessoas, mas ter segurança vai diretamente contra o que é “novo”, e sabe o que é “novo”? Atuar. A partir do instante em que você não cria mais nada, trocando a criatividade, a inspiração e o desconhecido pelo que você já fez, sabe e já conhece, você não tem como dizer que o seu trabalho é criativo. É repetitivo. Você é um funcionário de fábrica, você trampa na firma. E não tem nada de ruim em trabalhar em empresa, o foda é quando você transforma o entretenimento e a arte em linha de montagem. Aí você FODEU O BAGULHO.

Eu não sou ator, eu não faço ideia do que é ir em entrevista após entrevista audição após audição, por meses, anos, e tomar um “não” toda vez. Ou ainda pior, ficar no “talvez” que vira um “não” sem nem te avisarem. Mas pra quem atua, eis aqui uma verdade: Você ESCOLHEU essa carreira. A culpa É SUA. Quer um salário garantido no fim do mês? Toma aqui esse panfleto de curso técnico. Quer reconhecimento? Começa a ajudar ativamente na sua comunidade. Quer ser relevante pra população? Vai estudar economia e saúde e se candidata pra deputado. A opção existe. A opção sempre existe. Não dá pra dar uma de filhinho de papai e esperar que o mundo se curve porque você não tem os culhões de se dedicar à parada que você decidiu fazer. Ser ator não é ter certeza. Se você tem certeza você não é um artista.

E ainda ter a desfaçatez de, depois de anos e mais anos, me dizer que é uma pena que não vai continuar?! Aliás, essa frase aí não é pra Supernatural não, é pro Robert Downey Jr. É pro Seth MacFarlane. Pra Ellen Pompeo. Pro Jason Statham, pro Leonardo DiCaprio, pro Tony Ramos, pra maioria dos James Bond, pra Kelly Cuoco, pro Tarcísio Meira e a Glória Menezes, pra Michelle Rodriguez, pro Tom Cruise, Ingrid Guimarães, The Rock, Will Farrel, Paulo Gustavo, Anthony Hopkins e Milla Jovovich. É pra todo mundo que escolhe fazer o pior trabalho possível porque não pode se dar ao luxo de não ter todos os penduricalhos que quer pro próprio ego.

Então já vai tarde. Já está mais que na hora pra muita, muita, muita gente pedir as contas, se aposentar, investir em outra carreira ou simplesmente bater as botas mesmo. Porque se a sua obra é irrelevante pra você, colocá-la em cima do público é muito pior. Quem escolhe uma carreira que preza pelo desconhecido não pode relaxar e botar os pés pra cima, não sem jogar essa escolha fora e substituí-la pela ideia de que está tudo muito bem fazendo o serviço de uma máquina. E podem esperar: O dia em que literalmente as máquinas fizerem arte, não terá mais espaço pro ser humano.

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