Túmulo 127, Alaíde

Livros quarta-feira, 11 de maio de 2011

De vez em quando, o silvo metálico era o único som que animava a dimensão dos vivos por ali. Vinha do extenso cabo de aço preso ao solo, que cortava o caminho principal do cemitério, e que servia de guia para limitar o movimento dos cães de guarda. Sim, mortos ainda despertam ideias de dinheiro. Geralmente de ladrões mais covardes, em busca de um cruxifixo de bronze. Ironia: Era provável que viesse de alguma tumba construída na época em que bandido tirava o chapéu ao passar na porta do cemitério.

Mas o dinheiro tinha presença marcante em outros pontos, aliás, outras dimensões daquele campo de mortos novatos e experientes. O tal caminho principal parecia uma rua. Enfileiradas em ambas as suas margens, criptas luxuosas. Cada era um lar. Havia teto, porta, e pequenas janelas. Quem colasse o rosto na porta envidraçada via o cômodo final de famílias inteiras. Uma pequena saleta sem divisórias, cujas paredes traziam as duas datas: A que cada um havia passado para fora do útero e para dentro da parede. Como nas famílias, cada cripta tinha suas particularidades ridículas ou tristes, ainda mais àquela altura dos fatos. Um jovem esportista rico que, em 1948, viu sua jornada de prazer encerrada em ridículo tombo na escadaria da mansão. Revoltado ao infinito, tratou de jogar ao chão a laje que revestia a parede do altar. Espatifou assim a foto do irmão mais velho, que sempre ganhava com exclusividade os beliscões na bochecha do pai severo, reservados a quem sabia já naquele tempo, que o dinheiro se mantinha poderoso depois da morte.

Mas no momento, como a noite sempre pedia rigorosamente às vinte horas (Horário do jantar), a Srta. Alaíde saia para passear. Cripta 127. Felizmente o cemitério bicentenário reservava muitas colunas dóricas e arcos que reproduziam as praças de 1949, mesmo em 2010. Andava com uma lentidão de absurda melancolia, ou superioridade. Impossível dizer sem conhecê-la. Uma tarefa que poucos tiveram chance. Pois, nos dias amarelados, quando respirava, raramente punha os pés fora do casarão da família, erguido de forma arrogante pelo pai comerciante em plena Avenida Carlos Gomes. E sempre o fazia com mamãe, no Packard 1938 negro, que deslizava com o motor de 12 cilindros sobre ruas muito bem calçadas pela inveja alheia.

Alaíde estava bastante distraída, pois acabou por atravessar galerias a mais do que o percurso do footing poderia comportar. Possivelmente por que se encantara com a nova lápide de gaveta colocada no terceiro e último corredor. Cabe aqui dizer que a formosa senhorita, morta aos 29 anos de inexplicável congestão, costumava percorrer as galerias de tumbas situadas em paredes, olhando-as como as vitrines de tecidos e costumes que invocam um charme que era objeto de sua maior saudade. No caso, a Borges de Medeiros em mais de seis quarteirões cheios de prédios e pessoas estilo rococó. E com um ou outro Ford T e homens de chapéu. Ah, saudade.

O céu apareceu sobre a cabeça da moçoila, quando ela notou que tinha ido longe demais. Por conveniência poética a lua era inteira e as estrelas, muitas.

À frente, uma rampa muito longa do passeio descia. Passava ao lado da cruz onde se acendiam velas pelos miseráveis, que sequer tinham sua gaveta na parede de almas apertadas. E que assim, viviam no Campo Santo. No caso, campo era a forma poética e um tanto hipócrita de denominar os fundos do cemitério, um gigantesco capinzal, forrado por uma plantação de pequenas cruzes de metal enferrujado absolutamente iguais. A diferença era só o número nelas gravadas, que identificava quem estava enterrado onde. Podia ser uma ficha de senha para lugar melhor, se quiser ser mais esperançoso.

Ao final da rampa, onde as lajes vermelhas e brancas davam lugar à terra nua, estava ela. A conhecida de Alaíde, que ela jamais queria ter encontrado, ou posto os olhos.

Alaíde girou os calcanhares, num movimento pouco elegante, que chegou a esvoaçar o vestido preto e rendado de veludo. Caminhava tão rápido quanto o decoro permitia. Mas a outra já tinha a avistado. Sua raiva era a trilha bem marcada.

Após poucos minutos, Alaíde chegou à porta da cripta de mármore marrom. Não ousara olhar para trás por todo o caminho. Julgava-se a salvo. Quando então sentiu a mão muito magra no seu ombro.

A outra mulher trajava um vestido de chita ordinária. E sua mão permanecia sobre o ombro. Lentamente ela o apertou e empurrou a jovem dama contra o chão. No pequeno altar, Jesus assistia entediado. Na porta os dois anjos olhavam para cima, fazendo de conta que nada viam e se mostrando péssimos guardas.

Alaíde se ajoelhou. O medo de contrariar um só músculo de seu algoz era por demais terrível. Sentindo a dureza das lajes cobertas de poeira, ela sentiu a outra mão pousando sobre a sua cabeça (Cabelos tão lindos, penteados pela babá!). Então os dedos se abriram forçando-a a virar o rosto para a parede direita daquela saleta. Alaíde era muito respeitosa para com a família. Sempre mantinha o olhar baixo, em sinal de respeito àqueles que sempre soube estarem em algum lugar daquele reboco repleto de manchas de umidade.

– Abra os olhos. A voz da mulher disse. – Você tem que abrir.

A respiração parecia faltar. Alaíde jamais sentira pavor remotamente parecido. Seus olhos doíam de tanto que apertava as pálpebras fechadas. Mas o medo da mulher era inexplicavelmente mais avassalador e negro.

Exalou como não havia feito nem no leito de morte. Abriu as vistas e ali estava. Repousava o sono do completo esquecimento, contrário perfeito do amor. A moldura oval de madeira maciça e escura, com um delicado trabalho em prata e bronze escurecidos pelo fracasso em tudo que importava. Tudo isto apenas para conter o que devia ser a imagem fotográfica de Alaíde. Mas que se via apenas o colo coberto de rendas e o camafeu da bisavó, pois o rosto sumira pela ação do mijo dos mendigos.

O cofre da memória estava vazio. Pobre Alaíde.

O Cícero de Cesero não tem nada pra fazer, então mandou outro texto pro feijoada@baconfrito.com, e como não tem nada melhor pra por aqui, vai isso mesmo.

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