Terra à Deriva (Liú làng dì qiú)

Cinema quarta-feira, 17 de julho de 2019

 No futuro não muito distante, quando a expansão do Sol ameaça a tudo e todos no planeta Terra, governos se unem para colocar em prática um plano ambicioso: construir milhares de motores gigantes na superfície do planeta, levando-o para fora do perigo no nosso sistema solar. 17 anos mais tarde, o plano corre perigo de falhar catastróficamente quando a Terra passa por Júpiter. Um jovem rapaz, Liu Qi, sua irmã e seu avô são envolvidos sem querer nos esforços para impedir que, em 37 horas, Terra e Júpiter se choquem.

Confesso que fiquei um bom tempo sem assistir um filme do início ao fim por conta de um misto de pura preguiça mental e falta de tempo. Acompanhar séries é mais fácil, com a narrativa convenientemente diluída em episódios de 20, 30, 40 minutos. Com a vergonha pesando na consciência decidi um tempo atrás recomeçar minha carreira com a megaprodução chinesa que entrou sem alarde no catálogo da Netflix no início desse ano: Terra à Deriva.

O brasileiro, assim como todo mundo no planeta, está acostumado a assistir sci-fi de uma maneira só: Dublado Em inglês. De Flash Gordon a Interestelar, as grandes e famosas produções cinematográficas (Ou televisivas, aliás) do gênero costumavam ser feitas praticamente só por americanos, com o eventual filme japonês ou francês enfiado no meio pra dar algum semblante de diversidade; ainda assim, filmes estrangeiros – de qualquer gênero – acabavam sendo refeitos pro público americano de qualquer jeito, a ponto de serem ou desconhecidos do público em geral ou vistos como invenção americana (Olhando pra vocês, Yojimbo e Godzilla). Não que outros países não produzissem filmes. Feitos eles foram, só não foram reconhecidos. A União Soviética, por exemplo, produziu ficção científica de qualidade, que ficou presa atrás da propaganda negativa do ocidente, da barreira linguística e da cortina de ferro, só vendo a luz do dia e algum reconhecimento em tempos recentes.

Pra quem está prestando atenção, fica claro que os chineses são outro tipo de comunistas. Enquanto os soviéticos procuravam ficar o mais longe possível dos americanos e bebiam samogon em apartamentos claustrofóbicos com papel de parede com cor de cueca suja, o diretor Frank Gwo fez de tudo pra que The Wandering Earth passasse próximo o suficiente de Hollywood; o bastante pra fazer com que espectadores ocidentais ao menos concedessem o benefício da dúvida e assistissem um filme em uma língua completamente alienígena pra maioria de nós, baseado superficialmente em um livro (Escrito por Liu Cixin e vencedor dos prêmios Locus e Hugo) que provavelmente pouca gente desse lado do mundo leu. A arapuca funcionou certinho comigo e foi com alguma esperança que parei num sábado a noite pra encarar a sessão de duas horas.

 Eu tenho um celular da Xiaomi, então tá tudo certo.

O filme começa com uma proposta que desafia a cabeça até de fãs com a mente mais expandida por alucinógenos: Em um futuro não muito distante, o Sol está prestes a explodir levando metade do sistema solar com ele. A solução é fazer cidades subterrâneas pra proteger a parcela da população mundial que teve a sorte de ser escolhida pra morar nelas, fazer motores de propulsão gigantes, espalhá-los pela Terra e nos mudar pra outra estrela com planeta e tudo. Óbvio (?). Tem coisas piores na ficção-científica e nem sempre a medida de uma narrativa deve ser feita baseada nela ser objetivamente possível na chamada Realidade, mas Wandering Earth parece se vender como hard sci-fi e fica meio difícil defender assim. O filme começa até bem interessante, apresentando o astronauta Liu Peiqiang e seu filho pequeno Liu Qi, em uma cena bastante emotiva – eu não sabia, mas era um sinal do que viria pela frente.

Pulando 17 anos, Liu Qi agora é um adulto e as pessoas selecionadas (Ou com contatos no aparato burocrático do governo ditatorial chinês mundial) vivem agora debaixo da terra, protegidas por… Fontes termais de energia? Mágica? Não importa. Como produzir comida pra 3 bilhões de pessoas sem usar a superfície? Como a Terra ainda tem uma atmosfera? Como controlar uma esfera coberta de motores? Não importa também. Importa só que agora o filme já estabeleceu a ligação emocional entre Liu Qi, sua irmã adotiva, Han Duoduo, e seu avô Han Zi’ang, quando os três acabam em uma cela juntos. Não que você vá lembrar os nomes deles, mas enfim. E se você acha o lugar onde eles vão parar estranho, relaxe. Não se afudegue. Uma coisa pra se guardar da primeira meia hora do filme é que emoção é, tipo, muito importante em Wandering Earth.

Os problemas começam quando terremotos absurdos devastam (Ainda mais) a Terra, culpa da força gravitacional de Júpiter. O que Júpiter tem a ver com a história? Acontece que o planeta está sendo usado pra dar um gás na velocidade e trajetória da Terra – uma chamada manobra de gravidade assistida, existe mesmo, é bem legal – mesmo sabendo que a força gravitacional do maior planeta do sistema solar iria foder o coreto das placas tectônicas terrestres. Quem planejou isso sabendo o que ia causar e por que todo mundo parece surpreso quando acontece? Queria saber também.

 Parece perigoso, mas tudo bem, o roteiro protegeu todo mundo.

Mas no campo da emoção, as coisas vão a mil. Da metade do filme (Que tem duas horas de duração) pra frente, você começa a perder a conta de quantas vezes os personagens principais quase morreram tentando fazer alguma coisa completamente ridícula de absurda, mas sempre necessária pra sobrevivência humana e blá blá blá só pra serem salvos pelo roteiro por um ato heroico mais imbecil ainda. E aqui nós chegamos no principal problema do filme, que é claro o fato de que eu simplesmente não lembro metade do que acontece nele. Mas, como disse Raul Seixas, por quê cara?

Como o filme foi feito por chineses pensando no que nós desse lado do mundo gostaríamos de ver, o resultado é uma produção cheia de ação e momentos de heroísmo à lá MCU. Cheia demais pra falar a verdade. Tanto que, perto do final do filme, fica difícil saber qual o problema original já que literalmente tudo que pode dar errado, dá. Eu poderia citar o momento em que o personagem principal quase é esmagado tentando fazer uma máquina gigante funcionar na base do pisão, poderia falar da hora em que um grupo tenta dirigir caminhões em geleiras gigantescas enquanto a crosta terrestre está se desfazendo. Poderia? Sim. A história, em um dos seus momentos mais baixos, chega a… Ahem, se inspirar em 2001 – Uma Odisseia no Espaço pra incluir uma subtrama onde a inteligência artificial que guia a estação espacial, que por sua vez é usada pra guiar o planeta, fica má e precisa ser desligada pelo (Aparentemente) único astronauta que sobrou e ele é, claro, o pai de Liu Qi. Já percebeu que a explicação de cada situação é quase um parágrafo em si? Pois é.

Mas espera, tem mais. Toda vez que alguém morre e/ou precisa salvar o mundo de forma heroica (O que é todas as vezes, umas 5 ou 6 acho, talvez mais) a ação é completamente pausada pra um discurso heroico que demora bem mais do que deveria. Cenas caríssimas em CGI acontecem, os que precisam ficar vivos ficam, o público é liberado pra cumprir o luto pelo personagem que mal conhecia e nem lembra o nome, e a ação prossegue (De maneira mais HEROICA ainda). Ah, eu já falei que um dos principais temas do filme é HEROÍSMO e sacrifício? Sério. Não se passa um minuto sem que o espectador seja informado que [Insira ato de coragem e sacrifício] SERÁ LEMBRADO POR DEZ GERAÇÕES, MAS AINDA NÃO VENCEMOS E A TERRA ESTÁ EM PERIGO. Sinceramente, tem um determinado momento em que a trilha sonora poderia ter mudado pra música gospel brasileira e ninguém teria notado por que se encaixaria perfeitamente.

 O governo mundial usa a bandeira da China. Estranho né?

Eu lembro vagamente da narrativa de The Wandering Earth por que é muita coisa muito repetitiva, com muita vontade de se provar, de uma vez só. Se eu fosse me estender e detalhar tudo que acontece nos 125 minutos de filme – a maior parte sem inspiração nenhuma – eu precisaria de 43 páginas e teria que incluir o resultado no meu currículo Lattes. Mas enfim, você já entendeu. Não quero parecer repetitivo. Tem muito que pode ser dito sobre Wandering Earth. Que os efeitos especiais são completamente vívidos e bem feitos, que ele faz surpreendentemente pouca propaganda pro governo corrupto chinês, ou até que é bom ver um filme que não seja americano, nem mesmo ocidental, aparecendo como blockbuster mundial, mas tudo perde valor diante daquela que será, talvez, a maior forçada de barra do ano. 2,5 de 5, no máximo.

Pelo calibre dos prêmios, espero que o livro seja melhor.

Terra à Deriva

Liú làng dì qiú (125 minutos – Ficção Científica)
Lançamento: China, 2019
Direção: Frant Gwo
Roteiro: Gong Ge’er, Yan Dongxu, Frant Gwo, Ye Junce, Yang Zhixue, Wu Yi e Ye Ruchang, baseados no conto de Liu Cixin
Elenco: Qu Chuxiao, Li Guangjie, Ng Man-tat, Zhao Jinmai, Wu Jing e Qu Jingjing

Kirk aparentemente se empolgou em voltar a escrever. Mas não o suficiente pra escrever regularmente.

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