O mundo dos espíritos segundo a Coca-Cola

Contos terça-feira, 15 de maio de 2012

Não havia dor, esforço ou nada assim. Só toda adrenalina do seu corpo sendo despejada nas pernas. O verdadeiro instinto de sobrevivência que só queria colocar distância entre Nando e o desconhecido que, doze segundos atrás, havia levantado a camiseta com estampa do Seu Madruga e mostrado algo metálico, preto e sujo na cintura. Nando não se achava um sujeito dado a medos. Até tinha ajudado num parto de emergência, quando tinha apenas 14 anos. Foi num acampamento. Enquanto todos seus amigos desejavam constantemente entrar entre as pernas de alguma mulher, ele viu algo sair.

Passados os doze segundo, aquele som feio surgiu lá de trás. Um som seco, sem graça. Como algo que se quebrava. No caso, não se tratava de analogia. Um pedaço de chumbo, voando a pouco mais de cem metros por segundos, destroçou a 14a vértebra, passou então raspando pelo pericárdio que instantaneamente transformou-se em foco de hemorragia interna. Orgulhosa, a bala encerrou seu trabalho, parada por um costela que apenas conseguiu fazê-lo após trincar como vidro.

A bala orgulhosa não é bem uma expressão exagerada.

Em menos de 0,7 segundo, o corpo de Nando deixou de ser uma máquina maravilhosa da natureza para virar um caos dos infernos. Sangue jorrava por onde não devia, impulsos nervosos já não achavam caminha na papa que havia sido uma espinha dorsal. Sem nenhuma ordem a obedecer, só restou às pernas amolecerem, cedendo ao peso do tronco. Aquele corpo recebeu como berço a calçada de paralelepípedos tão duros. A respiração muito curta e rápida, o medo e desorientação ocupando toda a consciência. A dor começava a latejar numa velocidade ainda mais desconcertante que aquele minuto. A escala do tempo totalmente mudada fazendo dos segundos, minutos de dor muito aguda. O coração foi perdendo o ritmo, saindo da dança, reduzindo rapidamente suas batidas, ironicamente sufocado numa bolsa de sangue à sua volta. Finalmente, depois de trinta e dois anos sem parar por um segundo, o músculo cardíaco para completamente. Em volta do corpo, nada se importa com ele. Um gato malhado de bege e brando não dedica mais que 2 segundos à figura, rapidamente a esquecendo por um barata que corre pelo cimento da parede suja. Carros próximos ao beco buzinam com pressa de chegar onde não queriam estar. Sem oxigênio, o cérebro morria à taxa de centenas de milhares de células cerebrais por segundo.

Nando estava com a cara enterrada no chão. A dor foi ficando reduzida a uma sensação ruim, como num pesadelo que pouco assustava. Sua mente foi morar numa lembrança. Uma mesa pequena e baixa que havia na sala da casa de sua infância, coberta por uma colcha azul. Lá dentro mais um cobertor. Dentro, silêncio e escuridão absolutas e um cheiro de cobertor o faziam absolutamente aconchegado e sereno. Nada mais precisa acontecer, nenhuma expectativa ou desejo adicional. De vez em quando, algum rumor vindo de fora, que logo passava e só servia para reforçar a alegria de estar ali dentro. Felicidade é uma palavra gasta, mas nunca mais ele sentiria algo mais próximo deste termo do que naquele momento.

O escuro sob os cobertores foi se tornando confuso e misto com total ausência de consciência. Como que vindo de fora do seu mundo, Nando ouviu um barulho ríspido de metal raspando terra. Cimento? Sim, fresco e com cheiro forte. A massa cinzenta lentamente subiu à sua volta, tapando toda sua percepção, apagando a luz, o mundo se desligava dos sentidos.

Nando não sumiu. Não foi para o céu. Tampouco inferno. O ano era 1901. Nando passou a ser um tijolo, quase enterrado em terra vermelha nas fundações do monumental prédio do Banco Nacional da Argentina. Ninguém passa por ali, a luz não entra e apenas o cheiro de bolor cria alguma sensação terrena. Nando segue ali até hoje. E por anos ficará.

Estevez sentiu-se entediado. Sua vida é oprimida por seus companheiros de pós vida, que se empilham sobre ele, num depósito no centro de Amsterdã. Uma série de solavancos e breves momentos sob a luz do dia e então um novo depósito. Mais movimentação. Um saco plástico onde tenta conversar com um pacote de macarrão, mas este apenas chora sofridamente. Um armário perfumado. Estevez sente um gelado desconfortável. Está encostado na louça branca que forra o interior do porta-rolos de papel higiênico. Ele sente sua consciência indo para um pequeno pedaço que parte. É só um rolo de papelão vazio.

No aterro a céu aberto, montanhas de infinitos cadáveres lamentam sua sorte. Uma garrafa Pet ri feliz, ao ser catada por um menino sujo e quase nu. Afinal, a reencarnação é sempre uma esperança. E o mundo, cada vez mais cheio de espíritos assombrando as vitrines.

Cícero é um entusiasta do mundo dos espíritos, onde cada cagada que ele dá é o caminho para a redenção de um defunto. Quer ser legal como ele e ter seu texto publicado sem ter de ser contratado? Pergunte-me como!

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