O Deus do Amor

Contos segunda-feira, 02 de junho de 2014

O Deus do Amor é um homenzinho, já velho, com cabelo só nas laterais da cabeça, completamente brancos, tal qual sua curta barba. Ele é um deus. Claro, ele pode tomar a forma que quiser, mas esta é sua favorita. Ele flutua por aí, a mais ou menos um metro do chão, fazendo o que gosta de fazer. Ele não tem asas, usa apenas uma toga branca (Não translúcida – isso é coisa de outro deus) e está sempre descalço. Alguns dizem até que ele é meio narigudo.

Enfim, o Deus do Amor flutua por aí. Não, ele não sai fazendo as pessoas se apaixonarem, ele não é o Cupido. Aliás, o Deus do Amor não vai muito com a cara do Cupido, batendo suas asinhas por aí, atirando flechas à torto e à direito, fazendo as pessoas cometerem burrices e com seu fetiche estranho por lençóis convenientemente posicionados, não, o Deus do Amor não trata de paixonites e hormônios. Olha a surpresa: Ele é o deus do Amor. Com maiúscula.

O Deus do Amor, como não poderia deixar de ser, é emotivo ao extremo: Se enche de alegria ao ver casais de décadas segurando mãos nos bancos de praças e quase explode de ódio ao ver casais de adolescentes chamando a recém descoberta sexualidade de amor. Pela última vez, ele é o deus do Amor. Sim, aquele de verdade, aquele que te faz cometer as piores bobagens por sentimento, não por lucro. O lucro é coisa do Deus do Sexo, por isso ele se dá bem com o Deus da Barganha… Não sexualmente. E como para os deuses Amor e Sexo são coisas bem distintas, os debates sobre a validade da camisinha são muito acirrados. Para do Deus do Amor, entretanto, não há diferença: Amor não é sobre sexo, parem de insistir. O Deus do Amor é baunilha.

E, como o deus que é, não cabe questionamento: Quem há de ensinar sobre Amor ao próprio deus da coisa toda? E como tal, o Deus do Amor leva muito à sério todos os seus deveres inerentes, de fiscal à instrutor, de observador à agente decisivo. Não há papelada, mas isso não significa que é mais fácil, muito pelo contrário, é tudo na memória, e portanto o Deus do Amor nunca esquece. E nunca perdoa. O perdão é coisa de outro deus, e desde que ele e o Deus do Amor brigaram num jogo de cacheta a coisa nunca mais foi a mesma. Mas como o Amor é o Amor, e o Amor tudo vence (Outro motivo de intenso debate celestial), o Deus do Amor “deixa pra lá”, omite, finge que não viu: É por um bem maior, e se no final tudo vai dar certo, não há mal nenhum nisso. Há, entretanto, de se lembrar eternamente que a memória está lá, e a qualquer momento, pode ser que tudo volte à tona.

A verdade é que, tal qual o próprio Amor, o Deus do Amor é um tanto vingativo, e se por uma razão qualquer, por mais irrelevante que pareça, o Amor acabar, o Deus do Amor trata de botar o time em campo. Não, não no mercado, na fila, na busca, na jogada, mas no campo: O Deus do Amor passa por cima de tudo que ele mesmo fez, tal qual um tanque passa por cima das formigas. As chances de escapar são mínimas, e as chances de escapar ileso são ainda drasticamente menores. Nenhum outro deus gosta do Deus da Benevolência porque ele costuma ser muito chato nas festas, e assim o Deus do Amor transforma o Amor, que antes era escudo, em arma (E o Deus do Amor não gosta de quadrinhos).

Apesar de tudo, o Deus do Amor é um idealista, sempre pronto para se enganar com promessas aparentemente sinceras, realmente tenta se convencer que as mais esfarrapadas desculpas são verdade e constantemente achando que dessa vez vai dar certo. Sim, o Deus do Amor adora segundas chances, afinal, faz parte, e ele assim é porque, tal qual praticamente todos os deuses, o Deus do Amor é um tanto ganancioso: E se numa dessas ele perde um amor verdadeiro? Ou, ainda pior, se ele perde a chance de estraçalhar alguém e ensinar à plateia sobre o Amor verdadeiro? O Deus do Amor (E muitos outros deuses) é bem chegado ao estardalhaço, às grandes demonstrações de Amor, aos bravos e corajosos atos heróicos, às confissões desajeitadas e às redenções amorosas. O Amor é sobre espetáculo, e o Deus do Amor é produtor, diretor, plateia e crítico.

O Deus do Amor entretanto, exatamente como os outros deuses em suas respectivas áreas, nunca é protagonista. Não não, não há motivo para tristeza nisso: O Deus do Amor é sobre o Amor, e portanto onde há Amor há Amor para o Deus do Amor, e ele está muito bem com isso, afinal, parte do seu trabalho é justamente proliferar o Amor. Ainda assim, esta não é uma tarefa nada fácil já que o Amor não surge do nada, o que força o Deus do Amor à trabalhar com outros deuses, e como em todo trabalho, há os colegas com quem o Deus do Amor se dá bem e os colegas que são só colegas mesmo: O Deus do Sexo é um destes últimos, o que, verdade seja dita, o Deus do Amor retribuiu com uma rabugice sem limites, mas do outro lado do ringue há o Deus da Amizade (Que é excelente contando piadas) e o Deus do Ócio, que de tão amado por outros deuses, segundo todo o panteão, deveria se candidatar para as próximas eleições divinas.

E assim leva sua vida o Deus do Amor, mergulhando de cabeça e doando-se completamente à cada caso e relacionamento, sempre pronto para ter sua vingança, mas desejando a cada momento que tudo volte à ser como antes, pelo menos até o momento em que o Amor troca de dono. Essa é uma das grandes causas das dores de cabeça do Deus do Amor, mas quando ele finalmente resolve o problema, também não poderia ficar mais orgulhoso, e, claro, sendo um deus, faz questão de mostrar para todo mundo. Deus nenhum é humilde (E como poderiam ser? São deuses!), e o Deus do Amor não é exceção, e à bem da verdade, nada mais justo: O trabalho de criar um amor, fazê-lo crescer, se fortalecer, amadurecer e depois, sem mais nem menos, mudar metade da equação é inimaginável. E só fica pior se o primeiro Amor não cedeu, porque aí vira uma bagunça e têm-se problemas de jurisdição com outros deuses, pra não falar na fofoca, e o Deus do Amor, sendo quem é, tem muito ciúmes do próprio trabalho, ainda que o trabalho não tenha ciúmes de si próprio. Dizem as más línguas que o o último quebra pau que o Deus do Amor se envolveu foi com o Deus da Orgia e desde então eles só se falam quando extremamente necessário.

Mas isso não significa que o Deus do Amor seja certinho, aliás, é um dos mais atrapalhados e complicados deuses, mas ainda assim ele gosta de seus negócios em ordem, ou, ao menos no que ele chame de ordem: O Amor é espontâneo, e assim é o Deus do Amor, afinal, Amor é Amor, e o Amor não precisa de festa, papel assinado, luxo, festa e comemoração. O Deus do Amor tem inclusive uma apresentação em slides pronta, para explicar pormenorizadamente como cada uma dessas coisas desvia atenção do Amor em si e de como isso faz mal pra saúde. Ele também tem os melhores pacotes de férias e descontos especiais para retiros de casais, basta pedir que ele te dá um panfleto, e sendo minucioso é, é bem capaz de conseguir ingressos para grupos de apoio, cursos de autoconhecimento e palestras de auto-ajuda. Só não pergunte à ele sobre bons restaurantes, o Deus do Amor vive de miojo e salsicha.

E esta é a história do Deus do Amor, com suas particularidades e esquisitices, chacoalhando as mãos pra deixar tudo em ordem e garantir que o Amor possa florescer e se realizar, porque no fim este é o grande objetivo: Um Amor pleno, custe o que custar. Claro que, sendo isto uma pequena parte da infinita obra de um deus (O mais importante deus, segundo o próprio) não há como falar tudo, então fica o remendo: O Deus do Amor é um eterno otimista, um incurável sonhador, o primeiro e um último romântico, um completo crédulo e incansável perseguidor da felicidade. E justamente por ser assim é que o Deus do Amor dota o Amor de todas essas características, e consequentemente são estas as características que arrebatam os que amam. O Deus do Amor é e ama o Amor, e é por isso que ele chora assistindo comédias românticas.

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