Lei do Silêncio

Contos terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

Ariovaldo passou pela sala à caminho da cozinha. Ainda com sono botou a cafeteira para funcionar. Bocejou, voltou para a sala e foi aí que viu, por baixo da porta, o envelope branco com o carimbo do condomínio, colocado alí e não na caixa de correio no térreo de propósito. Não se surpreendeu nem um pouco.

Desde que comprara o apartamento, há seis anos atrás, estranhara o preço abaixo da média para a região. Segundo a corretora deixara escapar, outros oito candidatos haviam se interessado pelo imóvel mas desistido da compra pouco antes de fechar negócio. Ela deu-lhe um beijo quando ele finalmente assinou a papelada da venda. Dois dias depois de concluída a mudança, Ariovaldo descobriu o motivo de tanta desistência: O apartamento era assombrado.

Pegou o envelope e voltou para a cozinha para pegar o café, foi sentar-se na sala. Abriu o envelope mais por consideração do que interesse mesmo: Sabia exatamente sobre o que se tratava. “O Síndico notifica por meio deste” leu Ariovaldo, “a aplicação da multa por exceder o nível de ruído após o período das 22 horas”… Ariovaldo não precisava terminar de ler. Sabia já de cor o texto na carta, bem como sabia que a única alteração seria a data da autuação e do ocorrido. Não havia contado quantas vezes recebera a tal carta, chutava umas quarenta e poucas.

No começo foi uma surpresa, é claro, que o apartamento era assombrado… Pra falar a verdade mesmo, estava até espantado que o fantasma fosse exatamente como ele esperava: Sussurros, correntes se arrastando, portas rangendo, passos… Duvidou que fosse uma pegadinha de algum dos novos vizinhos, mas quando perguntou na reunião dos condôminos, todos se calaram e benzeram, fazendo o sinal da cruz. Ao fim da primeira semana, já sabia todo o repertório do fantasma e, de certo modo, ficara agradecido que não era o tipo que escreve nas paredes com sangue ou quebra espelhos. Se divertiu por meses convidando amigos céticos para passar a noite e provar então a existência de assombrações. Quando dava festas, não precisava sequer pedir para os convidados se retirarem, algo que o fantasma se encarregava de fazer quando já estava de saco cheio.

Seis meses depois da mudança, porém, Ariovaldo recebeu – na caixa de correio – a primeira carta igual aquela que tinha em sua frente. Entendeu: O fantasma esteve especialmente bem disposto na noite anterior e passara quase seis horas batendo portas e janelas, só para terminar o espetáculo com uma sinfonia de correntes e sinos do apocalipse. Foi incrível. Ariovaldo pagou a multa de bom gosto, e saiu de casa para comprar microfones e câmeras infravermelho para filmar a coisa toda, quem sabe até mesmo ficar famoso por causa do fantasma do 405.

Terminou o café e levantou com um suspiro, jogou a carta fora e coçou os olhos. Ontem à noite a assombração dedicou-se integralmente, das duas às seis da manhã, à dizer para o mundo o quanto ela não gostava da presença da Ariovaldo no apartamento. Sua ferramenta de escolha havia sido as portas do armário da cozinha, e o método de comunicação da mensagem, o código morse. Não que tenha sido surpresa alguma: Os armários da cozinha eram os únicos que ainda tinha portas no apartamento todo, já que Ariovaldo se preocupava com formigas na comida. Teria de tirá-los também, mas não estava com paciência para isso.

Religou o chuveiro (Deixava-o desligado para o fantasma não queimar mais um) e foi tomar banho. Escovou os dentes com uma escova descartável (Não usava a mesma dois dias em seguida, por conta de uma má experiência três anos atrás), vestiu-se (Após checar se não havia nenhuma aranha ou escorpião nos sapatos) e saiu para trabalhar. Ariovaldo não se dava mais ao trabalho de trancar a porta ou fechar as janelas: Sabia que nenhum dos outros condôminos iria se aventurar no apartamento, e a última vez que sofreu uma tentativa de assalto teve de resgatar o ladrão de ser afogado na pia do banheiro. Ariovaldo era intocável, intangível.

Chegou em casa já tarde, cansado e com sono. Dormira muito pouco ontem, e fizera o percurso de volta inteiro rezando para que o fantasma resolvesse tirar uma folga naquele dia. Ao invés disso, encontrou com o Síndico nas escadas. Não conversaram com palavras: Já haviam tido a mesma conversa vezes demais. O Síndico sentia muito, de verdade, mas a situação havia passado dos limites. Ariovaldo entrou no apartamento e se largou no sofá. Já havia tentado absolutamente tudo, de exorcismo à macumba, sem deixar de lado todos os médiuns e rituais que pôde encontrar. Alguns simplesmente não faziam efeito, outros acalmavam o fantasma por duas ou três noites, e outros ainda irritavam a assombração, que revidava com uma enxurrada de “UUUUUHs” e “OOOOOHs” a noite toda. Ariovaldo desistira de todas elas porque também já cansara das penas de galinha e crucifixos.

Acabou dormindo no sofá e pela primeira vez, sonhara com o fantasma. “A” fantasma, melhor dizendo: Chamava-se Eugênia, tinha morrido pouco mais de uma década atrás e, quando a casa foi demolida para dar lugar ao prédio, acabou por escolher o apartamento que ficava mais ou menos no mesmo lugar que o sótão. Conversaram por horas. Ariovaldo contou-lhe sobre todos os amigos e conhecidos que havia trazido ao apartamento para mostrar a obra da fantasma, e em troca, esta contou-lhe toda a sua vida, da infância no interior, o casamento com o filho de um industrial, a mudança para a capital, os filhos que a abandonaram, as traições do marido, e as últimas décadas, sozinha na casa agora demolida.

Ariovaldo sentiu-se começar a acordar, e em seus últimos momentos de sonho pediu à Eugênia que fizesse a transição para o além, que deixa-se os vivos para trás e seguisse em frente, garantiu-lhe que cuidaria do apartamento para o resto de sua vida. Eugênia mandou ele se foder. Ariovaldo acordou sobressaltado. Fazia sentido: Após tudo que ela lhe contara, Ariovaldo entendia perfeitamente porque nem filhos nem esposo a aguentavam. Olhou para a porta e viu o já esperado envelope branco por baixo da porta, o quarto só naquele mês.

Levantou, colocou a cafeteira para funcionar, tomou banho, se arrumou e saiu de casa. Voltou alguns minutos depois com duas novas malas, onde colocou todas as suas coisas. Colocou todas as portas de volta no lugar, ligou todos os disjuntores e fez um almoço completo, com tudo que tinha nos armários. Depois de comer foi até o apartamento do Síndico e adiantou-lhe o condomínio e a multa. Ligou para a imobiliária que lhe vendera o apartamento e disse que decidira colocá-lo à venda, marcaram de um corretor fazer a avaliação mais tarde no mesmo dia.

Quando Augusto, o corretor, chegou, Ariovaldo mostrou-lhe o apartamento inteiro. A avaliação foi muito bem: Não só a região havia valorizado, como também o aumento no valor do imóvel cobria todos os gastos e multas que Ariovaldo havia tido nos últimos anos. Saiu junto com Augusto, dizendo que iria vagar o apartamento imediatamente. Somente quando atravessaram o portão do condomínio, as chamas puderam ser vistas pela janela. Augusto entrou em desespero, Ariovaldo sentou-se em cima das malas. Ariovaldo olhava para a janela e, lá em cima, viu a fantasma olhando para ele, furiosa. “Vai se foder, Eugênia” disse baixinho e sorrindo, enquanto todo mundo mais corria para apagar as chamas.

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