As mulheres de Gillian Flynn – Libby Day (Lugares Escuros)

Livros segunda-feira, 25 de abril de 2016

Lugares Escuros foi o segundo romance de Gillian Flynn, publicado em 2009. Se comecei falando de Garota Exemplar pela popularidade do longa homônimo, sobre este eu alerto: Leiam o livro. SÓ O LIVRO. SÓ-O-LIVRO! Apesar de ser estrelado pela linda, musa, maravilhosa Charlize Theron, é melhor evitar a fadiga, porque é uma grande porcaria.

O thriller, cuja adaptação cinematográfica, eu insisto, é desastrosa, conta a história da bela, desbocada e do bar, Libby Day. A pequena menina ruiva que testemunhou a morte brutal de sua família e condenou o irmão mais velho, Ben 10 Day, à prisão perpetua quando atestou, perante ao júri, que o rapaz, então com 15 anos, havia assassinado mãe e irmãs. Fria, desajustada e cleptomaníaca na vida adulta, tem que enfrentar o passado ao ser convencida a investigar mais a fundo o drama familiar. O pavor de reencontrar o irmão, a quem era apegada na infância, e a culpa por, talvez, ter sido levada a acreditar que havia visto algo do qual já não tem tanta certeza, confere à protagonista alguma coisa de humanidade, assim como as raras relações interpessoais que o livro nos permite conhecer.

Eu.

De todas as mulheres de Gillian Flynn, Libby é a mais complexa e triste, com toda a razão. Revoltada e solitária, tem um toque de inocência e desonestidade. Ou desonestidade inocente? Nunca teve uma chance sequer de ter uma vida normal. Graças à espetacularização de sua dor e o abandono paterno, tornou-se uma adolescente e, posteriormente, uma adulta acomodada e desinteressada. Pela vida, pelo trabalho, que não tinha, pois vivia das doações — cada vez mais escassas — de desconhecidos, pelas relações humanas. Por tudo. Na tentativa de se afastar das semelhanças com Ben e a própria mãe, tingia os cabelos (Quando a situação financeira permitia) de loiro. Quando não, deixava uma generosa raiz ruiva, denunciando suas origens e tentava, a todo custo, conviver com as sequelas físicas e emocionais do massacre sofrido por sua família, fazendo pequenos furtos por diversão e observando a movimentação do bairro, com crianças, cachorros e velhas fofocando. Afastada da sua natureza rural, mas ainda presa à pobreza histórica dos Day. E sempre reclusa.

Sua vida muda quando conhece Lyle Wirth, um tipo esquisito, organizador de uma convenção de crimes, que a procura interessado em reabrir o caso de Ben e provar sua inocência. Falida pela falta de interesse do público nos assassinatos, após mais de 20 anos, e sem emprego, Libby acaba aceitando a oferta e, pelo dinheiro, e apenas pelo dinheiro, abre feridas que insistia em esconder e, algumas, que sequer sabia que tinha. Na saga pela verdade e pelo up na conta bancária, relembra da infância miserável na pequena cidade de Kinakee, no Kansas, dos maus tratos de Runner, seu pai, e da vida abnegada que norteava sua mãe, que trabalhava duro na fazenda decadente que herdara da família, enquanto se desdobrava em quatro para cuidar das crianças. E tenta lidar, a todo custo, com o doce e o amargor da possibilidade de inocência do irmão, que – ao mesmo tempo que lhe causaria alivio – aumentaria sua culpa por tê-lo encarcerado por tanto tempo. Nessa jornada, ela recupera o pouco que sobrou de quem um dia foi, ou poderia ter sido.

Lyle (Nicholas Hoult) e Libby (Charlize Theron) no filme que vocês não vão assistir.

Nos flashbacks, conhecemos a falecida Patty Day, mãe de Libby, Ben e das duas irmãs mortas, Michelle e Debby. Aos 30 e tantos anos já é, apesar de jovem, muito velha. Descuidada e maltratada pela vida. Uma mulher cansada de cuidar sozinha dos negócios, das crianças e de si mesma. Profundamente infeliz e deprimida, como Libby veio a ser. Uma jovem senhora vivendo no automático, fazendo o necessário para garantir um pouco de conforto aos filhos e, nesse meio tempo, ignorando os abusos do ex-marido. Gillian Flynn parece ter trabalhado a personagem tão bem, com um carinho tão especial, que o leitor consegue sentir a exaustão e os limites da matriarca. Ela tem marcada em seu corpo, e na alma, a tristeza e o vazio de uma sucessão de más escolhas. Da vida que poderia ter tido, mas não teve. Dos “e se” que teriam conduzido o destino dela e das crianças para outra direção, talvez mais segura e feliz. Talvez.

O plot twist que marca o fim da história é o mais interessante dos três livros de Flynn e o mais inesperado. Talvez fosse confuso para outros núcleos, outros romances, outros personagens, mas não para Lugares Escuros. Com os Day não poderia ser diferente, ou fácil. Simples assim. A verdade traz um sopro de esperança à Libby, de que poderá seguir em frente e, finalmente, debelar seus demônios, colocar a cara no sol e jogar seus cabelos (Ruivos) ao vento. Mas, para mim, ainda é muito triste. Mesmo depois de tanto tempo, não consigo imaginar qualquer final para a família onde, em algum universo paralelo, ainda que não fosse dizimada, qualquer um deles tivesse chances reais de felicidade. Estariam os cinco fadados a viver, para sempre, na maldita cidade de Kinakee, subempregados, mal casados e perpetuando a inércia emocional e o desespero quase orgânicos de Patty e sua prole. Nenhum vislumbre de alegria. Nem para os mortos, nem para os vivos.

Lugares Escuros


Dark Places
Ano de Edição: 2009
Autor: Gillian Flynn
Número de Páginas: 349
Editora: Broadway Books

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