A casa dos séculos

Contos segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Na casa dos séculos, sem número e em rua nenhuma, localizada além de Além da Imaginação, vive o Século 21. Tem quatorze anos de idade. Ele está naquela fase de descobrir o próprio corpo, rabiscar nomes de banda no tênis, não ter noção do ridículo e não saber que é um completo idiota. Compreensível, todo mundo foi assim – ou algo parecido. O irmão mais velho que o precede por exemplo, Século 20, quando tinha a mesma idade já estava matando príncipes e começando guerras mundiais, é verdade, mas o pobrezinho era tão inocente ao mesmo tempo. Gostava de ouvir rádio, não sabia o que era um carro rápido de verdade, nem tinha computador, Facebook e smartphone com Android. Que besteira. O Século 21 agora já pega o carro do papai, e odeia ser tido como inocente; ele se vê como esperto, legal, moderno, afinal é o que ele é, não? Ele é cheio de poder, desde que nasceu. Cada ano que passa ele se torna mais legal. Tão legal, mas tão legal, que seu irmão pensa que ele vai cair duro e sufocado qualquer hora dessas.

I

A cada cem anos é a mesma coisa: Nasce uma criança e um velho se aposenta na casa dos séculos. Sempre. Mas apesar de o fato ser o mesmo, as circunstâncias sempre mudam. Quando o Século 20 nasceu, por exemplo, era muito próximo do seu irmão que tinha acabado de se aposentar. Gostava de brincar com as tranqueiras que o século 19 tinha lhe deixado pra cuidar, e adorava principalmente as imagens, fossem paradas ou em movimento. Gostava tanto que passou a vida mexendo e melhorando o cinema e as máquinas de fotografia. Até inventou a televisão, um equipamento mágico, que trazia o cinema pra dentro de casa. Ele sempre foi muito criativo. Quando tinha mais de cinquenta anos chegou a inventar um novo tipo de música, e pegou tanto gosto na coisa que nunca mais parou.

II

Século 20 via o Século 19 com uma espécie de respeito. Mas bem lá fundo se considerava infinitamente superior, apesar de nunca ter dito isso na cara de seu irmão, nem quando era jovem. Por isso que agora, aposentado, olha com desdém o seu irmão mais novo. Julga que Século 21 não apenas se acha superior, ele tem certeza, e faz questão de demonstrar isso sempre que pode. Aliás, ele tem certeza de tudo. Tem 14 anos e nunca, nunca teve uma dúvida. Além disso, só reclama. Tem tudo, todas as heranças passadas de irmão pra irmão, e vive reclamando da vida. E pior, culpa o Século 20 por todos os problemas que tem. Bem, é certo que o 20 não solucionou tantas coisas assim enquanto podia. O velho saiu de cena contente por poder jogar algumas coisas nas mãos do recém-nascido, e ainda fez aquela pegadinha do Bug do Milênio um pouco antes de assinar a aposentadoria (Senso de humor nunca foi seu forte). A verdade é que Século 20 achava que já tinha feito muito mais do que qualquer outro século já tinha feito (Orgulho incubado era sua especialidade mesmo) e que ia deixar um legado tão, mas tão especial, que o próximo a nascer ia ter o que ele nunca teve. Não estava de todo errado, mas não é sempre assim? Século 20 se acha a última bolacha do pacote, mesmo que esse pacote ainda tenha muita bolacha pela frente.

III

A casa dos séculos é uma casa no mínimo estranha. Há cinco cômodos. Em um deles, vive o recém nascido. No outro, ligado por uma porta ao primeiro, fica seu imediato antecessor. No terceiro, ficam os muito, muito velhos, que quase nunca falam com os mais novos; se trancam e se isolam, e contam velhas histórias. Um dia eles também vão para o quarto cômodo, o mausoléu, onde os séculos dormem quando a hora chega. O quinto cômodo é uma incógnita. Sabe-se que lá vivem os pais dos séculos. Assim que nasce uma nova criança, ela é posta para fora e é supervisionada por seus irmãos. Se bem que na prática, quem cuida do mais novo até uma certa idade é sempre o mais velho anterior, que fica no quarto contíguo até um certo ponto. Um dia, quando a criança cresce e tem idade o suficiente pra se virar, ele se tranca com os outros velhos no terceiro cômodo e deixa o mais novo sozinho. Século 20 foi deixado à própria sorte quando tinha pouco mais de dezoito anos. Já o Século 19 foi deixado sozinho com menos de dez anos. Talvez por isso seja um dos velhos mais rabugentos (Conta-se que o Século 15 foi um dos mais rabugentos que existiu: Teve uma vida um tanto deprimente e quando finalmente viu alguma emoção descobrindo a América, teve que passar tudo para o 16. Guardou a mágoa até ir para o mausoléu).

IV

A vida dos séculos também é incomum. Ela segue uma série de regras. Primeiro, todos devem seguir o mesmo padrão numérico para os nomes. Segundo os livros de história, foi invenção do Século 1, que queria ser diferente dos anteriores e se aproveitou de curiosos eventos ocorridos na Terra durante sua vida para proclamar uma mudança. Não há consenso, mas uma das teorias mais plausíveis é que Século 1 tivesse sérios problemas de personalidade, sendo um tanto megalomaníaco, além de ter raiva de seus irmãos mais velhos, o que explica sua decisão unilateral de transformar seu nascimento em marco inicial de uma nova era, e emprestou uma expressão humana para nomear seu nascimento: Anno domini. A verdade é que Século 1 só teve sorte de ter sido considerado importante. Além disso, sua “revolução” não foi imediatamente popular em toda a Terra, e demorou alguns séculos pra pegar (Por sorte, os séculos seguintes adoraram fazer parte de uma nova era e nunca mudaram o que 1 criou. E assim a coisa ficou). Por falta de registros (Século 1 os queimou pouco antes de se aposentar) não se sabe como os séculos eram chamados antes do anno domini, nem qual foi o primeiro século de verdade. O jeito foi contá-los ao contrário à partir do novo ponto zero.

Outra regra da vida dos séculos, e extremamente importante, é que eles devem nascer a cada cem anos. Pode parecer bastante óbvia, mas o século de cem anos é relativamente moderno na Terra. Invenção dos Homens, que observaram o movimento de seu pequeno planeta e criaram vários sistemas de medida. O sistema atual foi escolhido como norma pelos pais do tempo, que concluíram ser o melhor inventado pela humanidade. Por que os poderosos pais do tempo se regulam por uma invenção humana ainda é uma pergunta sem resposta. Talvez tenham apenas achado uma boa idéia mesmo.

A terceira regra, que deriva da segunda, é que os séculos devem se aposentar quando seu “governo” chega ao fim. Séculos se aposentam por que não morrem. Na devida hora, apenas dormem um sono profundo e não acordam jamais. Séculos aposentados mas ainda acordados são pouco mais que conselheiros, já que não têm mais poder. Séculos adormecidos deixam seus ensinamentos nos livros. Quanto tempo os séculos aposentados permanecem acordados varia de acordo com seu vigor e vontade. Como já dissemos, eventualmente todos os destronados ficam numa espécie de limbo, o terceiro cômodo da casa dos séculos. Atualmente, Século 18 agoniza, pois tem pavor do sono eterno; Século 19 resmunga todo o tempo, e Século 20 ainda não abandonou o 21. Orgulhoso, Século 20 pretende ficar ao lado de 21 por muito tempo.

Entretanto, via de regra, um século se cansa de acompanhar o outro em menos de cinqüenta anos. Depois que está no limbo, é questão de tempo até se resignar e ir embora. E a ordem não falha.

V

Na casa dos séculos, em rua nenhuma, o século 21 brinca. Parece ter um senso de humor meio sádico, e ri de qualquer coisa. É uma criança esquisita. Cheia de si, mas ignorante e despreparada, como foram todos na sua idade. Século 20 o olha com desdém, mas também um pouco de medo. “O que será dessa criança”, ele pensa, “quando eu me for? O que será do legado do Tempo?” O que o preocupa é sua personalidade. Século 19 foi sério demais, mas tinha força, garra. Século 20 não era tão sério, mas também tinha garra e além disso era muito criativo, pena que teve muitos problemas pra resolver. Mas ao olhar para o século 21, podia-se pensar que é retardado. “Uma criança rica, mas sem potencial”, pensava o mais velho.

Século 20 olhava para o seu irmão mais novo com desdém e um misto de medo. Como todos os séculos olharam para os seus irmãos recém nascidos. Século 21 brinca despreocupado, e olha pro seu irmão mais velho, com um pouco desprezo e certo de que é melhor do que ele simplesmente por ser mais jovem. Do mesmo jeito que todos os séculos olharam para seus irmãos aposentados.

E assim o Tempo segue seu curso.

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